Em meio à discussão sobre o passivo que aUnião teria com os estados por conta da não incidência do ICMS sobre asexportações, alguns governadores chegaram a propor a revogação da Lei Kandir,que regulamenta a desoneração, como forma de atenuar a crise fiscal nospróximos anos. Porém, segundo especialistas, a revogação não seria suficientepara que as operações de venda de mercadorias para o exterior voltassem a sertributadas pelo imposto estadual.
Tributaristas consultados pelo JOTA avaliaramque a mera revogação da Lei Kandir seria insuficiente para permitir atributação de exportações, porque a proibição da incidência de ICMS sobrequaisquer mercadorias destinadas ao exterior está na Constituição. Ou seja, naavaliação dos advogados a aprovação apenas de uma lei complementar afastando aLei Kandir fere o princípio da imunidade tributária constitucional sobreexportações.
Para incentivar as exportações brasileiras, apartir de 1996 a Lei Kandir (LC 87/1996) afastou a tributação sobrebens primários e semielaborados vendidos ao exterior. Como compensação pelasperdas tributárias decorrentes da desoneração do ICMS, a União faria repassesaos estados exportadores.
A todos os estados, de 1996 a 2018, a perdasomada com a desoneração chegaria a R$ 649,9 bilhões, de acordo com umainterlocutora próxima ao fisco estadual mineiro.
Segundo afirmou a jornalistas no início deagosto o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, a União repassou comocompensação pelas perdas tributárias decorrentes da política de desoneração R$4,3 bilhões em 2017 e R$ 900 milhões em 2018. Entretanto, de acordo com Zema, apartir de 2019 os repasses foram reduzidos a zero.
De um lado, a União não vê espaço noorçamento para pagar os entes federados e, de outro, os estados cobram osrepasses para enfrentar o cenário de crise fiscal que dificulta o pagamento atéde servidores. Diante da resistência da União em transferir as verbas, o SupremoTribunal Federal (STF) media o conflito na ADO 25.
Uma das propostas debatidas em audiência como ministro Gilmar Mendes, elaborada pelo próprio estado de Minas Gerais,estabelece que a União pagaria R$ 19 bilhões em 2019 e, a partir de 2020,reservaria no orçamento R$ 18 bilhões anualmente, que seriam repassados aolongo de 60 anos.
Para acelerar as tratativas sobre acompensação pela desoneração de exportações e pedir um posicionamento maisconcreto da União, os estados tentam agendar para o início de setembro novaaudiência com Gilmar Mendes.
Além de discutir compensações passadas,governadores de alguns estados exportadores passaram a defender mudanças na LeiKandir para permitir que, daqui para frente, cada estado decida se pretendetributar as vendas de bens primários e semielaborados ao exterior.
Mudançana Constituição
De acordo com tributaristas, para autorizarque os estados cobrem o ICMS sobre bens primários e semielaborados destinados aoutros países, os governadores teriam que articular no Congresso a aprovação demudanças na Constituição. A PEC teria que alterar a emenda 42/2003, que veda aincidência de ICMS sobre quaisquer mercadorias destinadas ao exterior. Apósmudar a Constituição seria possível revogar a Lei Kandir, afirmam os advogados.
“Se os estados revogarem a Lei Kandir, aproibição de incidência do ICMS sobre exportação de quaisquer mercadorias eserviços continua existindo na própria Constituição. Não podem voltar atributar, e muito menos cercear o uso de créditos por parte de exportadores”,opinou o advogado Gustavo Brigagão, sócio do escritório Brigagão Duque-EstradaAdvogados.
Os advogados apontam que uma estratégiapossível para os estados seria afastar o diferimento do imposto – ou seja, apostergação do pagamento – ou não devolver os créditos de ICMS tomados nasoperações anteriores à exportação na cadeia produtiva. Na prática as medidasteriam o mesmo efeito que restabelecer a tributação, avaliam, e poderiam causardisputas judiciais.
Segundo a tributarista Vanessa Rahal Canado,professora da Fundação Getulio Vargas, em muitos estados o diferimento éconcedido por decreto ou lei estadual, por exemplo, e poderia ser revogado semnecessidade de aval do Congresso Nacional.
“Em vez de devolver o dinheiro [decorrente datomada de créditos para os contribuintes], muitos estados já desoneram asetapas anteriores da cadeia. Na prática a exportadora acumula pouco créditoporque o produto já vem sem tributação. O que podem fazer é revogar osdiferimentos nas etapas internas, o que faz acumular muito crédito para oexportador, que pode não ser devolvido nunca”, projetou.
Crisefiscal dos estados
Em declarações a jornalistas no início deagosto o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, defendeu que cada estado tenhaautonomia para decidir se tributa produtos destinados à exportação. Issoporque, como a União parou de fazer os repasses, os estados precisariam dealternativas de financiamento para lidar com a crise fiscal.
“O Goiás e todo o Centro-Oeste estão emclassificação de risco C, o que nos exclui de qualquer empréstimo. Não possotributar matéria prima que vai para exportação, não sou compensado pelo governofederal, não posso emitir títulos. Qual saída eu tenho? Estamos buscando devolta a nossa prerrogativa dentro de um critério. Não extrapolaremos, mas temosque ter um gatilho que autoriza cobrar o ICMS”, argumentou.
Presidente do Insper, o economista MarcosLisboa avaliou que a política de tributar exportações iria na contramão daspráticas adotadas em outros países do mundo. Com a imunidade tributária navenda ao exterior, o país permite a entrada de um volume maior de dólares. Porsua vez, uma taxa de câmbio mais favorável incentiva as importações, que sãouma relevante fonte de arrecadação tributária.
“As exportações permitem o país a importar. Édifícil imaginar uma notícia mais negativa para os estados a médio prazo [doque a tributação de exportações]. A medida prejudica a produção local, ageração de renda e emprego. Os estados têm um problema é com o gasto compessoal. Em vez de enfrentar o problema, estão ameaçando destruir quem paga aconta”, disse.
Já o advogado Flavio Carvalho, sócio doescritório Schneider Pugliese, avaliou que os estados podem articular o retornoda tributação como estratégia para pressionar a União a ressarci-los pelasperdas passadas. “Assim os estados colocam na discussão também as empresas, quese preocupam muito em perder a desoneração. Acabaria se tornando um pleito nãosó dos governadores mas de todo o setor econômico para que a União devolva odinheiro aos estados”, disse.
Para o advogado João Colussi, sócio do MattosFilho, permitir a incidência de ICMS sobre exportações também vai na contramãode políticas fiscais como o Reintegra e a concessão de créditos presumidos. Osprogramas vão além da imunidade para eliminar até resíduos tributários quesobram na cadeia produtiva, a exemplo de PIS/Cofins embutidos em fretes.
“Para ter certeza de que o país estáexportando exclusivamente produto e não tributo, além da imunidade naexportação existiram esses programas preocupados com a competitividade”,complementou.
Tentativade acordo sobre Lei Kandir
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre(DEM-AP), anunciou a jornalistas em 20 de agosto que o governo federal secomprometeu a pagar, em 2019, R$ 4 bilhões aos estados exportadores comocompensação pelas perdas decorrentes da Lei Kandir “tão logo esteja resolvida aquestão dos campos de petróleo”. Além disso, faria parte do acordo a aprovaçãode uma lei que dê autonomia aos entes federados para decidir sobre a desoneraçãode exportações.
Entretanto, para interlocutores próximos aogoverno de Minas Gerais, as declarações não mudam a estratégia de um dosprincipais estados afetados pela desoneração de fazer pressão no governofederal por meio da comissão no STF destinada a debater propostas decompensação.
Segundo a vice-presidente da FederaçãoBrasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), MariaAparecida Meloni, o governo federal faz promessas de acordo contraditórias e emseguida muda as propostas ou volta atrás. Ela chamou as movimentações da Uniãode estratégia de “diversionismo”, que teria como objetivo protelar o quantopuder a resolução do impasse. “Isso está muito evidente na conduta dosrepresentantes da União. Quanto mais adiarem a decisão, melhor para eles.”
De acordo com o advogado-geral de MinasGerais, Sérgio Pessoa, o principal interesse do estado é reaver as perdas dopassado. Isso porque, diferentemente de outros estados, a exploração de minériona região está em curva descendente e a perspectiva de tributação não seria tãofavorável. “Agora o ideal é realmente levar à exaustão o debate sobre aregulamentação da Lei Kandir”, disse.
Repórter: JAMILE RACANICCI
Fonte: Jota