O Regime de Recuperação Fiscal é uma CILADA. Uma lição que vem do Rio de Janeiro.
"Não podemos entregar a Cedae."
"Para os tecnocratas comandados pelo ministro Paulo Guedes, não basta o Rio entregar os anéis e os dedos, eles querem os braços", diz o presidente da Alerj, André Ceciliano, em referência à proposta do governo Jair Bolsonaro de privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio (Cedae) para que o estado possa aderir ao Regime de Recuperação Fiscal
E chegamos às vésperas do leilão da Cedae, previsto para a próxima sexta-feira, dia 30, na seguinte situação: o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), assinado pelo Estado do Rio de Janeiro e o Governo Federal em 2017, não foi renovado em setembro de 2020, apesar da previsão contratual nesse sentido. O Rio só não foi excluído da RRF por uma decisão liminar do ministro Luiz Fux, na véspera do último Natal. E, agora, diante da ameaça feita pela Alerj de não permitir o leilão caso não seja renovado o RRF nos termos de 2017, é oferecido ao Rio uma “adesão” ao “novo RRF”, como ficou conhecida a Lei Complementar 178, com regras muito mais draconianas que as previstas em 2017 e que inviabilizam qualquer administração pública.
Tente administrar um estado, um município ou um país sem fazer concurso público nem reajustar os salários pela inflação pelo período de nove anos. Não vai funcionar. Um estado não é como uma empresa. Mesmo falido, ele tem que continuar prestando serviços, não pode simplesmente fechar as portas. Compreendo o desejo do governador Cláudio Castro de ficar bem com o Paulo Guedes e colocar algum dinheiro do leilão para dentro do caixa do Tesouro e poder assim investir em obras em ano pré-eleitoral. Porém, é hora de pensar no Estado a médio e longo prazos e não no horizonte de um ano. Já vimos esse filme antes e ele não acabou bem.
Como o assunto não é simples, convém ser didático: o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), ao qual o Rio de Janeiro se submete desde 2017, foi feito para aqueles estados que, literalmente, faliram. Ou seja, cujas receitas passaram a ser insuficientes para arcar com suas despesas e pagamento das dívidas. O Rio foi o único estado da federação que aderiu ao Regime. Ao se submeter a ele, num momento de caos, em que faltava dinheiro para pagar a folha de ativos e inativos e até colocar gasolina nas viaturas policiais, o Estado e a Alerj aceitaram as condições impostas pelo Governo Federal de então. Em troca de ter o pagamento das dívidas suspenso por três anos (renováveis por igual período) e autorização para tomar um empréstimo, à época, de R$ 2,9 bilhões junto ao banco francês BNP Paribas (da qual a União foi avalista), o Rio teria que fazer um forte ajuste fiscal e entregar a Cedae, a última das estatais fluminenses, superavitária em mais de R$ 1 bi/ano, para ser privatizada.
Embora haja um esforço para convencer a sociedade do contrário, o Rio fez, sim, seu dever de casa. Aumentou a Receita Corrente Líquida do Estado em cerca de 18% de 2017 a 2020, além de reduzir a despesa consolidada com pessoal em 3,2%, no mesmo período. Também cresceu a receita tributária em cerca de 13%. Só a Alerj devolveu para o Estado mais de R$ 1 bilhão do seu orçamento em três anos, fruto de uma gestão austera e responsável, porque era preciso dar o exemplo.
Nada disso foi considerado para a renovação do Regime de Recuperação Fiscal. Ao analisar as cláusulas dos itens do acordo, a equipe econômica alegou que o Estado teria descumprido pontos que geraram despesas extras da ordem de R$ 602 milhões nesses três anos, desconsiderando por completo os bons resultados obtidos. Por conta disso, a renovação até hoje não foi assinada e o Rio só não saiu do RRF por obra do STF. Nesse meio tempo, a equipe econômica aproveitou para fazer o que eles chamam de “um novo RRF”, a Lei Complementar 178, gestada por cabeças que claramente acreditam que administrar um estado é como gerenciar uma empresa privada. Uma empresa pode vender todos os seus ativos, demitir todos os funcionários, fechar as portas em caso de falência. Um estado ou um município, não. Ele precisa repor professores, policiais, bombeiros, médicos, enfermeiros, fiscais da receita, seres humanos que são afastados por razões diversas, se aposentam ou morrem.
Para os tecnocratas comandados pelo ministro Paulo Guedes, não basta o Rio entregar os anéis e os dedos, eles querem os braços.
Não é preciso ser vidente para antever o que acontecerá, num cenário de inflação galopante, quando os servidores compreenderem que ficarão mais nove anos sem receber qualquer reposição salarial e as tropas e as escolas sem contratar novos policiais e professores por concurso público.
O programa prevê ainda a redução de pelo menos 20% de incentivos fiscais, mas o fato é que sem incentivos não conseguiremos atrair empresas e gerar os empregos que tanto precisamos. Já seria uma grande ajuda se a Petrobras, detentora de vários benefícios fiscais, ao invés de encomendar seus navios e plataformas em outros países, o fizesse em estaleiros do Rio. Sabemos da importância do equilíbrio das contas públicas, mas ela deve vir acompanhada de uma proposta de recuperação econômica que faça a roda da economia girar e eleve a nossa receita tributária – principal problema do Rio.
Por tudo isso, colocarei na pauta de quinta-feira a Proposta de Decreto Legislativo 57/21 que condiciona a venda da Cedae à assinatura da renovação do RRF – e não uma simples adesão à Lei Complementar 178. A equipe econômica já deu seguidas mostras de desapreço pelo Rio. Não podemos entregar a Cedae, a última joia da coroa, sem um contrato devidamente assinado, de papel passado. De boas intenções o inferno está cheio. A Cedae é o único trunfo que temos para garantir um bom acordo para o estado.
(foto: divulgação Alerj)