"Reformas aprofundam cenário de concentração tributária junto à União" declara jurista e Associado da AFFEMG ao Estado de Minas
As três mais influentes propostas de Reforma Tributária que tramitam no Congresso Nacional a PEC 45/2019, a PEC 110/2019 e a primeira das quatro etapas de Reforma Tributária encaminhada pelo governo federal têm em uma característica em comum: aprofundam o cenário de concentração de receitas tributárias junto à União.
Com o agravante de que estados e municípios já enfrentam a progressiva conjuntura de maior participação no financiamento de serviços essenciais como a saúde, a educação e a segurança pública.
“Sai governo e entra governo, cada vez mais as despesas da União são descentralizadas para estados e municípios e as receitas tributárias centralizadas, o que promove em paralelo o desmonte do estado prestacional”, avalia o jurista especializado em direito tributário Onofre Alves Batista Júnior, professor da UFMG e ex-Advogado Geral do Estado de Minas Gerais.
“A arrecadação tributária bruta nacional correspondeu, em 2015, a 32,66% do PIB. Desse percentual, 68,26% correspondeu à arrecadação da União; 25,37% se referiu à arrecadação estadual e 6,37% à arrecadação municipal”, avalia o tributarista.
Segundo ele, as três propostas de Reforma Tributária mais influentes invadem a base para a tributação sobre o consumo de estados e municípios o que, no médio e longo prazo ampliará a concentração de receitas; o que também representará o esvaziamento da autonomia e poder de estados e municípios, cada vez mais dependentes politicamente do governo federal.
Também são esperados questionamentos e judicialização entre entes federados, prenúncio de mais insegurança jurídica, afirma o tributarista. Ao mesmo tempo, nenhuma das propostas implicará em prometida redução da carga tributária.
“Nunca houve uma reforma tributária na história que não tenha aumentado tributos. Desta vez não será diferente”, resume Onofre Alves Batista Júnior.
No cenário em que seja aprovada a primeira fase de reforma apresentada pelo governo, a classe média tende a ser a mais penalizada, adverte o tributarista. Ao mesmo tempo em que a prestação de serviços – escolas e saúde serão mais tributados, o que tende a ser repassado ao consumidor final - cogita-se acabar com os descontos destes gastos sobre o Imposto de Renda.
“Qual é o recado para a classe média? A classe média vai ter de pagar escola e saúde – serviços que pela proposta já vão ter aumento de tributação – e ainda não poderá ter esses descontos no Imposto de Renda. Então ataca muito pesado a classe média”, considera.
"A proposta do governo piora muito o cenário de concentração de receitas na União, que já fica com quase 70% do bolo"
Que avaliação o senhor faz das propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional? Haverá redução da carga tributária?
Há várias propostas em tramitação. As mais influentes são a PEC 45/2019 e a PEC 110/2019. E agora o governo encaminhou a primeira das fases da proposta dele, que, segundo anunciou, terá quatro fases. A proposta do governo implanta o que ele chamou de Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que é a junção do PIS e da Cofins (incidente sobre a receita, folha de salários e importação) para fazer um novo tributo muito similar ao ICMS dos estados (o novo tributo teria alíquota única de 12% para as empresas em geral). As outras etapas da reforma o governo ficou de enviar depois, mas uma delas seria destinada a tributar lucros e dividendos, criar algo próximo a uma nova CPMF – que aliás o governo diz que não será uma CPMF –, com o benefício de redução da tributação sobre a folha. Há uma promessa de que essa reforma que propõe não irá aumentar a carga tributária, coisa difícil de crer: nunca aconteceu na história, nunca houve uma reforma tributária que não tenha aumentado tributos. O que temos estudado hoje é que o governo federal está propondo uma alíquota de 12% sobre um dos tributos mais rentáveis dele e tudo indica que está aumentando a tributação sobre PIS e Cofins significativamente. Hoje, você paga alíquotas de 3,65% para PIS e Cofins. Além disso, ele cria esse novo tributo (CBS) e faz com que incida sobre serviços também. E com isso os municípios não conseguirão mais expandir a sua base de tributação, que fica inviabilizada com o avanço da União. Para os prestadores de serviço, em geral, por essa proposta, o tributo mais do que dobra. O que o governo alega, é que essa é a alíquota necessária, porque a faz não cumulativa. O que significa isso? Hoje ela é cumulativa. Você paga e acabou. O que o governo vai dizer é que hoje quem toma o serviço, vai excluir o crédito daquilo que pagou na fase anterior. Só que o serviço, quando é prestado, é feito diretamente para o consumidor final. E ele tem sobretudo a mão de obra. Não tem grandes insumos entrando ali para abater o crédito que vai pagar. Então para os serviços, a estimativa é de que a tributação mais do que dobre. Advogados, escolas, médicos, todos esses são serviços.
O senhor poderia exemplificar como seria essa compensação do crédito tributário?
O prestador de serviço, ao invés de pagar o PIS e Cofins na atual alíquota de 3,65%, vai pagar 12% do novo tributo, o CBS. E vai pegar o crédito das coisas que comprou para prestar o serviço e abater na apuração dos 12%. Por exemplo, se eu cobrei R$ 100 e comprei R$ 10 de insumos, eu pago os 12% sobre R$ 90. Só que como serviços não têm muitos insumos, a expectativa é mais do que dobre a tributação sobre serviços. O que estão todos percebendo é que o governo faz essa mudança para contornar derrotas que teve no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins e do ISS na base de cálculo do PIS/Cofins. A União perdeu várias ações. O PIS/Cofins incidia sobre o ICMS. O valor que você pagava de ICMS virava base para você recolher o PIS/Cofins. A União perdeu isso no STF, são perdas significativas de PIS/Cofins. O que os técnicos, especialistas e professores de tributário estão considerando é que a União pretenderia com essa reforma recuperar esses valores. Então, tem um aumento de tributo que está disfarçado, e na prática a simplificação é mínima.
Quais as principais diferenças entre a PEC 45, encampada por Rodrigo Maia, e a reforma proposta pelo governo?
Há uma diferença fundamental entre as duas. A PEC 45 pega todos os tributos dos estados e dos municípios – o ISS (municipal), o ICMS (estadual), a PIS/Cofins e o IPI (União) – e soma num único tributo, que seria o IBS (Imposto Sobre Bens e Serviços). Agora, a proposta do governo desta primeira fase junta dois tributos federais – o PIS e a COFINS (sobre a receita), que tenta transformar em tributo sobre o consumo, evitando neste momento um embate direto com estados e municípios. Tem uma questão técnica subjacente nisso. É que a tributação sobre o consumo é muito disfarçada, é fácil de ser tributada. A União sempre quis essa tributação sobre o consumo, que é a dos estados e municípios. Com as propostas em curso, invade de vez essa base de consumo dos estados e transforma essa tributação da receita de PIS e Cofins em tributação sobre o consumo. No final das contas é isso, e é proposta comum à PEC 45. Só que a PEC 45 cria um tributo único e compartilha entre União e municípios. O governo pelo momento só mexeu nos dois tributos federais, não tocou na tributação dos estados e municípios, embora tenha tratado de uma base de consumo que na Constituição é dos estados. Promete muita briga, porque o governo alega que não vai mexer nas receitas dos estados. Mas os estados não vão conseguir criar um ICMS novo, não cumulativo, que funcione nos moldes europeus, com essa invasão toda sobre o consumo. Mas a pior briga por vir será com os municípios, pois a proposta do governo multiplica quase que por três a tributação sobre os serviços. E com isso os municípios vão, no futuro ficar sem nada, já que o tributo que mais cresce, o mais promissor, é sobre os serviços, o ISS.
Já tínhamos um contexto de concentração de receitas na União a partir da Constituição de 1988. Essa proposta do governo agrava esse cenário?
Estamos vivendo, desde 1988, seja com o governo que for, um processo rápido, disfarçado de empoderamento da União. E o grande viés desse processo é na centralização de receita tributária e na descentralização de despesa financeira. A proposta do governo piora muito o cenário de concentração de receitas na União, que já fica com quase 70% do bolo. Mas se formos olhar com atenção, vamos indagar: a quem cabe o financiamento com a educação? Mais de 80% aos estados. A quem cabe o financiamento com a saúde? O SUS, quando começou, 80% era aporte da União; hoje é menos de 30%. A segurança: o sistema prisional, a polícia civil, a polícia militar é tudo com os estados. Então educação, saúde e segurança constituem áreas em que o gasto é principalmente dos estados; mas a receita está acumulada na União. A nova proposta de reforma tributária do governo invade a base de consumo dos estados, que não perdem receita, mas o potencial de crescimento acabou, a União invade. E a tendência é de que no futuro a concentração seja cada vez maior na União. Então é o desmonte, em paralelo, do estado prestacional, porque descentraliza despesas e centraliza receitas.
O que esperar de mudanças para o Imposto de Renda?
Sobre o Imposto de Renda, o que temos até agora são burburinhos e falas. O que se diz é que se pretende cortar os descontos com saúde e educação. Ao mesmo tempo, fala-se em retirar a tributação de folha de pagamento de quem ganha até um salário mínimo e tributar lucros e dividendos, baixando a alíquota também do Imposto de Renda. Qual é o recado para a classe média? A classe média vai ter de pagar escola e saúde – serviços que pela proposta já vão ter aumento de tributação – e ainda não poderá ter esses descontos no Imposto de Renda. Então ataca muito pesado a classe média. De resto estão estudando reduzir a tributação do IR da pessoa jurídica e tributar lucros e dividendos; estão estudando a alíquota marginal do IR para 25%, mas cortar os descontos de saúde e educação; e estão tentando desonerar a folha de pagamento, com as contribuições previdenciárias. Para isso querem criar a nova CPMF.
Qual é a avaliação dos acadêmicos sobre a proposta desta primeira fase de Reforma Tributária do governo e as outras duas mais influentes que já tramitavam no Congresso?
São propostas, na visão da academia, muito tacanhas. Os especialistas, em geral, caminham para o entendimento de que seriam mais importantes reformas graduais, sem grande impacto de criação de tributos novos, pois todos sabem que de boas intenções, o inferno está cheio. Você faz uma lei achando que ela está simplificando, depois vai ver que ela dá margem a várias discussões e aí leva mais 10 anos nos tribunais até consolidar os entendimentos. E hoje uma série de entendimentos começam a ser consolidados e na hora que isso ocorre, tira-se um novo coelho da cartola e o manicômio começa todo de novo. Então do lado da academia há a visão de que não adianta tirar coelhos da cartola, a simplificação deve ser gradual, corrigindo os defeitos dos tributos. A ideia de inventar novos tributos, que englobam tudo, a academia caminha no sentido de cautela, porque tudo depois redunda no judiciário, o judiciário é lento. Então não gera segurança jurídica e o efeito que se deseja não se alcança, a não ser aumentar a tributação.
Se olhar para o nosso sistema tributário, quais são os principais gargalos, os principais problemas?
O sistema tributário tem hoje uma complexidade elevada. Se formos olhar essa complexidade ela ocorreu sobretudo na União, com a confecção de dezenas de contribuições. Temos contribuições para tudo: Sebrae, a CSLL, contribuições previdenciárias – um monte delas, para risco de acidente de trabalho, de aposentadoria especial. O que a União fez foram puxadinhos no sistema tributário. E temos um ICMS que foi corroído com guerras fiscais. O que precisávamos de fato: uma disciplina e coordenação para o ICMS; fundos que compensassem o Nordeste – senão ele sairia perdendo no jogo do ICMS; e que compensassem os estados exportadores , nos moldes da Lei Kandir. E que a União cuidasse de simplificar os tributos dela. Essa é uma visão que a academia tem com mais força. E que as mudanças fossem feitas criteriosamente e não com esses tributos malucos. Por exemplo temos a possibilidade de ressurgir a CPMF, que todos conhecem os efeitos. Por mais que Guedes diga que não é CPMF, todos sabem que é. Não existe imposto digital. Imposto digital no mundo todo é sobre a renda, não sobre o consumo. É a CPMF mais uma vez, que é fácil de ser arrecada, só chegar na ponta do sistema bancário e buscar no caixa o dinheiro do contribuinte.